«JANEIRO — 1918
Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava‐a com os mesmos erros e paixões. Não me arrependo, nunca me arrependi. Perdia outras tantas horas diante do que é eterno, embebido ainda neste sonho puído. Não me habituo: não posso ver uma árvore sem espanto, e acabo desconhecendo a vida e titubeando como comecei a vida. Ignoro tudo, acho tudo esplêndido, até as coisas vulgares: extraio ternura duma pedra. Não sei — nem me importo — se creio na imortalidade da alma, mas do fundo do meu ser agradeço a Deus ter‐me deixado assistir um momento a este espectáculo desabalado da vida. Isso me basta. Isso me enche: levo‐o para a cova, para remoer durante séculos e séculos até ao juízo final. Nunca fui homem de acção e ainda bem para mim: tive mais horas perdidas... Fugi sempre dos fantasmas agitados, que me metem medo. Os homens que mais me interessaram na existência foram outros: foram, por exemplo, D. João da Câmara, poeta e santo, Corrêa d’Oliveira, um chapéu alto e nervos, nascido para cantar, Columbano e a sua arte exclusiva, e alguns desgraçados que mal sabiam exprimir‐se. Conheci muitos ignorados e felizes. Meio doidos e atónitos. O Nápoles ainda hoje dorme sobre a mesma rima de jornais?... Outro andava roto e dava tudo aos pobres. O homem é tanto melhor quanto maior quinhão de sonho lhe coube em sorte. De dor também.» [Memórias, p. 13]
Memórias e outras obras de Raul Brandão estão disponíveis em https://relogiodagua.pt/autor/raul-brandao/
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