João Miguel Fernandes Jorge: «Depois da leitura diária da natureza»
A Relógio D’Água perguntou a alguns dos autores que publica que leituras estão a fazer e se são diferentes das habituais, que consequências poderá ter a actual pandemia nas relações individuais e na criação ensaística e literária, e ainda as suas consequências na ecologia e na política internacionais.
Publicamos em seguida essas respostas.
«Sempre entendi que o que estamos a ler permanece como mais leitura se o mantivermos sob um manto de silêncio e discrição. Parte do que nestes últimos tempos tenho lido, devo-o a uma recomendação de um poeta, Frederico Pedreira, que muito prezo, com títulos já publicados na Relógio — e onde espero voltar a ver, após as sucessivas quarentenas, um seu livro novo. É a extensa obra ensaísta de um americano, que me recusava a ler, porque o supunha por demais continuador de Greenberg. São esses seus livros que ocupam parte das minhas tardes, depois da leitura diária da natureza. E esta é: podas e limpezas de caminhos no pequeno bosque e, por vezes, uma boa fogueira [com autorização, claro] para queimar os sobrantes. É um bom exercício, e depois o fogo, os cheiros intensos — ainda ontem, de uma sebe de alecrins que foi aparada.
Na mesa-de-cabeceira, e em muitas noites a leitura vai pela madrugada, tenho viajado pelas Cenas Contemporâneas e pelas Cenas da Foz, de Camilo, na recolha que Hugo Pinto Santos fez da ficção curta camiliana, para a E-Primatur. Mas ontem o volume de Camilo foi substituído por Os Incuráveis, de Agustina. Eles, os incuráveis, sabem que “a maior solidão é a dos que recuperam a solidão”.
Durante uns tempos escrever-se-ão umas prosas e uns versos possidónios, em que toda a sinceridade e todo o saber ficam prisioneiros da suficiência de tentar brilhar. E dirão que, a não ser o amor, não haverá outra existência do espírito. Depois, talvez muito depois, ao longe, se comecem a fazer escavações e se comece a ouvir a voz do pegureiro a chamar as cabras para o redil. No final do Crátilo, Sócrates diz, com uma toada heraclitiana, que afirmar como certo o que quer que seja é decidir contra si mesmo, pois “tudo flui e se desfaz, como vasos de argila”.» [João Miguel Fernandes Jorge]
Antologia Dos Poemas e outras obras de João Miguel Fernandes Jorge estão disponíveis em https://relogiodagua.pt/autor/joao-miguel-fernandes-jorge/
A Noite Inteira e Presa Comum, de Frederico Pedreira, estão disponíveis em https://relogiodagua.pt/autor/frederico-pedreira/
Os Incuráveis e outras obras de Agustina Bessa-Luís estão disponíveis em https://relogiodagua.pt/autor/agustina-bessa-luis/
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