13.8.19

Sobre «Tu Sabes que Queres», de Kristen Roupenian





«Margot tem 20 anos e trabalha no bar de cinema independente. Uma noite, namorisca ao balcão com um cliente, homem de idade indeterminada (saberemos depois que tem 34 anos), e dá-lhe o número de telefone. É o começo de uma relação como tantas outras: mensagens de telemóvel durante uns tempos, depois convite para um filme, muita conversa, um crescendo de intimidade, copos num bar, e de súbito Margot vê-se na casa de alguém que mal conhece, à beira de um envolvimento sexual não propriamente desejado (antes já acontecera um “beijo horrível” e “excessivo”, de língua quase até à garganta). Agora estão no quarto, ele começa a despir-se e o arrependimento não consegue vencer a inércia: “Olhando para ele assim, naquela posição desconfortável, com a barriga grande, flácida e coberta de pelos em destaque, Margot pensou: oh, não! Mas a ideia do que teria de fazer para pôr travão ao que tinha iniciado foi de mais para ela; isso exigiria uma dose de tato e meiguice que ela se sentia incapaz de invocar. Não é que receasse que ele a obrigasse a fazer qualquer coisa contra a vontade dela, mas, se naquela altura dissesse que queria parar, depois de tudo o que tinha feito para o incentivar, pareceria mimada e caprichosa, como se tivesse pedido uma coisa no restaurante e depois de a comida chegar mudasse de ideias e a mandasse para trás.”
O conto “Amante de Gatos” — “Cat Person” no original — é um texto inteligente, com excelente ritmo narrativo, sobre as relações de poder entre homens e mulheres, as armadilhas e equívocos que surgem amiúde no terreno minado dos encontros amorosos contemporâneos, e as fronteiras perigosamente difusas do consentimento sexual. Publicado em dezembro de 2017 na New Yorker, depois de várias recusas de outras revistas, o conto revelou-se um caso extremo de timing perfeito. Embora escrito antes, surgiu no auge do movimento #metoo e serviu de mote a todo o tipo de debates e polémicas nas redes sociais, tornando-se a prosa de ficção mais lida e comentada na história da mítica revista das elites culturais americanas. (…)
O retrato é implacável e quase ninguém se salva. Tanto os homens como as mulheres se revelam incapazes de lidar com os seus sentimentos e menos ainda com os seus desejos. E quando baixam a guarda, quando se põem a escavar por baixo do verniz da civilidade, surgem monstros, perversidade e muita violência, um sem-fim de nódoas negras, tanto físicas como psicológicas. (…)»
[José Mário Silva, Expresso, E, 2019/08/10]

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