10.12.18

Sobre Vidas Escritas, de Javier Marías




«Em resultado dessa convivência de modalidades literárias, as biografias acolhidas neste Vidas Escritas são sempre relatos de corte preciso, que gerem a administração dos factos enquanto abertura permanente para a fruição. Ao historiar a vida deste conjunto de autores, Marías reflecte sempre sobre as obras por eles produzidas, bem como os processos de escrita que lhes são característicos. Por esse motivo, estes ensaios nunca são um labor exclusivista da biografia, do ensaio, nem da narrativa — mas uma superação da possibilidade de haver fronteiras entre cada uma daquelas vias. 
Insigne cultor da escrita ficcional, conhecedor profundo dos seus mecanismos, como prático e teórico, Marías quebra os pactos dos géneros com amplo donaire. Escrevendo, por exemplo, sobre Nabokov, eis que o narrador se deixa explicitar, saltando borda fora da cabine onde se ocultava na minúcia da sua navegação — “O maior prazer, o maior destino, os maiores êxtases, experimentou-os eles a sós, caçando borboletas, resolvendo problemas de xadrez, traduzindo Pushkin, escrevendo os seus livros. Morreu a 2 de Julho de 1977 em Montreux, com 78 anos, e eu soube dessa morte na calle Sierpes, ao abrir um jornal enquanto tomava o pequeno-almoço no Laredo.” (p.106) Mas Javier Marías ainda acrescentará cambiantes a este diaporama dos géneros escritos. É o caso de uma recensão às cartas trocadas entre Turgénev e Flaubert, que lhe fornece generoso pretexto para um suplemento às suas biografias. (…)
Esta edição inclui uma rubrica que fez parte de Literatura e Fantasma, mas que Javier Marías incorporou numa reedição de Vidas Escritas: Mulheres Fugitivas. Do conjunto destes poderosos retratos femininos, destaca-se aquele que o escritor dedica a Emily Brontë. Um dos vários casos em que Javier Marías faz da biografia um momento de exemplar concisão. Uma brevidade que não inibe, nem o pormenor, nem a liberdade dos relatos — “O senhor Bontë — que exotizou o seu original Brunty durante a sua passagem, como não podia deixar de ser, por Oxford (talvez porque bronte significa ‘trovão’ em grego) — tinha fama de excêntrico e de austero, e, apesar de as informações existentes terem origem em fontes não muito fidedignas (porque ressentidas), afirmava-se que no seu zelo se recusava a dar carne às filhas e as condenava a um regime de batatas” (p.214).

Vidas Escritas é um momento cimeiro da biografia praticada com informação e consumada brevidade. Modelo de escrita e erudição, a recolha de Javier Marías é o trabalho de um escritor que sente entre os seus, mesmo quando anota, sempre com elegância, as suas falhas de personalidade ou os ridículos da sua senda.» [Hugo Pinto Santos, Público, ípsilon, 7/12/2018. Texto completo aqui.]

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