15.2.18

O desejo de perdurar




Comecei por conhecer Natália Nunes como autora, tendo a Relógio D’Água editado três dos seus romances. 
Mais tarde, encontrei-me algumas vezes com ela em casa da filha, Cristina Carvalho.
Natália Nunes fez parte de uma geração de escritoras cuja obra, iniciada nos anos cinquenta do século xx, escapou às correntes do neo-realismo e do surrealismo. Umas transcenderam o seu tempo e mantêm-se actuais, como é o caso de Agustina Bessa-Luís. Outras conseguiram fazê-lo em muitas das suas obras, como sucedeu como Maria Judite de Carvalho, Irene Lisboa, Fernanda Botelho e a própria Natália Nunes.
Era uma intelectual que mantinha uma lucidez por vezes cortante. Quando a conversa era literária, entusiasmava-se, e o seu sorriso era uma cintilação de ironia.
Foi de uma grande coragem quando jovem e bela mulher de uma família tradicional beirã se dispôs a casar com um homem quinze anos mais velho, divorciado e pai de um filho. Era Rómulo de Carvalho e a sua história amorosa é um segredo que, para um estranho como eu, só pode ser pressentida nalguns versos de Gedeão ou frases dos romances de Natália Nunes.
Às vezes, encontrava-a passeando por caminhos de Quintas. Ia absorta e o Vale de Deus e as montanhas cobertas de pinheiros e urze branca pareciam apenas um cenário para as suas meditações. O vale tem início numa capela onde outrora o mar chegava e é atravessado por um ribeiro que vai desaguar na Praia de São Lourenço. No último Verão, o vale e a montanha arderam e são agora uma paisagem de castanho e cinza.
Há algumas semanas Cristina Carvalho ofereceu-me, com visível entusiasmo, um livro de Natália Nunes: Horas Vivas. «Lê», disse-me, «vais ficar espantado.» O livro permaneceu algumas semanas na minha secretária e lamento agora não o ter aberto há mais tempo. São memórias de infância dedicadas ao pai.
Começam assim:
«Um dia, quando vivíamos ainda na cidade, o pai chegou a casa mais cedo do que costumava. Vinha extremamente pálido e amparado por dois homens que o levaram para o quarto e o depuseram sobre a cama.»


Francisco Vale

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