3.1.18

Maria Filomena Molder em entrevista, a propósito do lançamento do seu livro «Dia Alegre, Dia Pensante, Dias Fatais»





«Na Filosofia podemos entrar nas coisas antes de as ter vivido e escrever sobre elas, pensá-las, ou é preciso esperar para pôr lá a pele e então começar?

É capaz de ser possível admitir os dois casos. Penso que em Filosofia a tendência é antecipar, com muitos riscos, porque pode cair na desonestidade, pode entrar numa retórica imaginativa aparentemente muito rigorosa, que desemboca numa espécie de vazio. Nos casos melhores isso não acontece. Por exemplo: penso em Kant, em relação à arte. Apesar de tudo aquilo que ele diz sobre arte estar assente numa experiência pobríssima no que se refere ao contacto e ao exercício diário e ao amor pela arte, ele consegue dizer coisas sobre a arte que muitas pessoas que têm muita experiência dela nunca conseguiriam dizer. Isto é um poder filosófico. É o poder da antecipação compreensiva. Vendo pouco e vendo mesmo o que não é o melhor, ele consegue perceber a condição interna daquilo, perceber a relação connosco. Isso é extraordinário. Mas há casos em que o autor, estou a pensar em Nietzsche, é um viajante. Abandonou tudo: abandonou a universidade, abandonou a casa, para além da casa dos pais nunca chegou a ter casa fixa, e toda a vida se tornou um viajante, um amigo do movimento, de andar. É muito profunda a relação dele com a natureza, e também com a arte, com a literatura... Ele leu tudo o que havia para ser lido do ponto de vista literário, quer poesia, quer romance, quer filosofia, quer textos de natureza científica, e tudo absorveu para aquilo a que queria chegar. Aí eu acho que há sempre uma antecipação no sentido: há uma pré-orientação da nossa vida que não foi feita por escolha, e essa pré-orientação ou é preenchida ou não é preenchida, conforme nós fazemos isto ou fazemos aquilo. À antecipação tem de estar ligado uma capacidade de ser afectado muito, muito, muito profunda.
(…)

Isso está ligado a um tema que aparece muitas vezes no que escreve: a alegria contraposta à lucidez? É um tema que lhe é caro?

Sim, é muito caro. Nós não podemos ignorar a escuridão, o deserto, os perigos, o terror da vida. Acho que a Clarice Lispector foi quem melhor percebeu isso, porque diz que pelo menos, e é tudo podemos aceitar isso. Não podemos deitar fora a condição, ou libertarmo-nos dela, mas podemos aceitá-la, e daí pode vir um sentimento, uma emoção forte, de alegria. A mortalidade é inevitável, mas nós podemos amar a vida enquanto mortais.

É mais fácil escrever sobre isso do que viver assim?

Sem dúvida. É mais fácil escrever. No entanto também podemos exercitar a alegria. O Alain ensina muito. Por exemplo: se estamos muito acabrunhados, tentemos fazer assim [ergue os ombros]. Não evita que fiquemos acabrunhados e que entremos em angústias tremendas: como é que se pode evitar? Tínhamos um condão qualquer, uma chave que mais ninguém tinha... Voltando ao escrever e viver: há pessoas que têm mais dificuldades do que outras em aceitar que são mortais, mas ninguém aceita muito bem. E tudo depende disso, a nossa vida toda depende disso, de sermos mortais. Muito se escreveu sobre isso e se continuará a escrever, mas escrever não é viver. Não tem nada a ver. A Clarice Lispector era, por aquilo que se lê nos seus livros e por coisas autobiográficas e biográficas, uma pessoa extremamente poderosa, atacada por uma angústia sem fim. O esforço que ela fazia, na escrita e na vida, para, de alguma maneira, dar forma àquela angústia, transformá-la noutra coisa, é como tirar de um mal um bem, ou descobrir que nesse mal há um bem. Se não tivéssemos febre não percebíamos certas doenças que temos. Não sei se se pode extirpar a angústia da nossa vida, desconfio que não. Como diz o Kierkegaard, que é um autor que eu não estudo muito: "A angústia faz-nos dançar.”» [Maria Filomena Molder em entrevista a Mariana Pereira, DN, 30/12/17, texto completo em https://www.dn.pt/artes/interior/a-vida-que-nao-e-digna-de-ser-vivida-tem-de-cessar-9016637.html ]

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