3.10.16

Viajar É Preciso, por Francisco Vale

 


 


A forma de viajar que se está a tornar mais comum é a de “viajar sem ver”, para usar a expressão de Andrés Neuman.
Milhares de turistas desembarcam de paquetes, aviões e autocarros em cidades como Lisboa, fazem percursos de várias horas ou permanecem alguns dias e registam imagens que colocam nas redes sociais ou levam consigo. Partem sem quase conhecer ninguém nem ver para lá das aparências.
A parte antiga das cidades tende a uniformizar-se, desaparecem muitas das formas de vida e comércio que as tornavam diferentes e foram no passado uma das principais razões para viajar. Os centros de Veneza, Berlim, Praga, Roma, Lisboa, Londres ou Paris são hoje esplanadas do mundo.
Claro que há os que seguem fielmente os Guias de Viagem e têm uma ideia da história e da importância dos locais que visitam. Mas acabam por se acotovelar em multidão para espreitar a inacabada Sagrada Família em Barcelona, a Torre de Belém, os dourados do Taj Mahal, a Estátua da Liberdade em Nova Iorque ou os Guerreiros de terracota de Xian. E partem com a frustração de não terem visitado outros locais que os guias mais ou menos Michelin consideram imperdíveis.
Hoje já não são possíveis, pelo menos no nosso planeta, viagens de descoberta e conhecimento de que foram exemplos as de Alexandre Rodrigues Ferreira, Humboldt, Darwin, Alfred Wallace e Pedro António de Andrade (que nos deixaram obras científicas como Diário da Viagem Filosófica, A Viagem do Beagle ou Cosmos). Nem sequer são prováveis viagens tão perigosas como as narradas por Fernão Mendes Pinto, Alexandra David-Néel, Jack London, Annemarie Schwarzenbach, Freya Stark, Edith Wharton e Robert Byron.
Mas é possível evitar que a viagem se torne “uma travessia das aparências”.
E é em contracorrente às formas de “viajar sem ver” que a Relógio D’Água relança agora a sua colecção de Viagens com títulos como As Ilhas Gregas, de Lawrence Durrell, Homenagem a Barcelona, de Colm Tóibín, Roma, de Gógol, Paris França, de Gertrude Stein, e Inverno no Próximo Oriente, de Annemarie Schwarzenbach.
Estes livros valem por si, permitem voos de imaginação sem esperas de aeroporto.
É uma “viagem”, a descrição que Durrell faz da vida quotidiana nas ilhas de Corfu, Samos, Creta ou Naxos, com a sua paisagem impregnada de história e mitos (embora não nos possa dar o calor, o cheiro, as cores, as vozes incompreensíveis e os acasos de uma visita pessoal).
E depois de lermos Homenagem a Barcelona nunca mais a capital da Catalunha nos parecerá a mesma.
Há quem prefira viajar com o olhar desprevenido, sabendo pouco dos locais que visita com uma espécie de ignorância deliberada. Fica-se assim mais disponível para o assombro de uma primeira visão do Machu Picchu, da terra vermelha em África, dos fiordes nórdicos ou da esfuziante vida das Ramblas, numa espécie de avidez inicial. E afinal perder-se numa cidade é, como dizia Walter Benjamin, uma arte. Mas, mesmo nestes casos, a posterior leitura de um livro permite revisitar esses locais através de um outro olhar e algum tempo depois as impressões recebidas e as que lemos confundem-se na memória.
Mas o melhor ainda é viajar para locais que previamente se conhecem, que se “leram” antes ou que se vão conhecendo à medida que para lá vamos.
A escolha dos meios de transporte é uma importante decisão do viajante, não sendo por acaso que ocupavam só por si um lugar essencial  na narrativa das viagens até finais do século xix, como podemos ver em Viagens com Uma Burra pelas Cevenas, de R. L. Stevenson.
O ritmo é essencial, sendo diferente a viagem em que mal se tem tempo para registar uma imagem fotográfica de um vendedor de tapetes num souk de Marraquexe e aquela em que se pode aceitar um chá e negociar com o habitual faz-de-conta que acreditamos em todas as magnificências que nos exibem.
Mas, até quando não viajamos com vagares de caminhante, é possível recuperar muito do que se perde lendo o livro certo. Pode assim combinar-se o espanto real de uma primeira vez com a nostalgia do “já visto”, “ver” as ruas de Paris, sabendo que foi naquele restaurante que Joyce bebia vinho branco e naquela praça que se tomou a Bastilha, amanhecer numa ilha grega atentos ao rumor dos mitos que se retiram, ou visitar Els Quatre Gats de Barcelona, sabendo que ali se sentaram e expuseram Picasso e Miró.


Publicado, em versão ligeiramente diferente, no Jornal de Letras, 14 de Setembro de 2016.

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