Os acontecimentos que levaram Voltaire a
escrever o seu Tratado sobre a Tolerância poderiam ter passado quase
despercebidos aos seus contemporâneos. Tratava-se de um abuso judicial de uma
extrema crueldade, mas nada de muito estranho aos hábitos da monarquia absoluta
do Século das Luzes. Há um jovem huguenote que se suicida e uma multidão que se
dispõe a linchar o pai, que acusa de ter assassinado o filho porque este se
tornara católico. Não há provas nem indícios nesse sentido. Pelo contrário,
Jean Calas é considerado um bom pai e tolerante em relação à orientação
religiosa do filho.
Mas o poder judicial cede ao fanatismo
popular e Jean Calas é executado. O génio
de Voltaire consegue extrair do episódio ilações cuja validade permanece
até aos nossos dias.
«Os povos de que a História nos transmitiu alguns esparsos
conhecimentos olharam todos eles para as diferentes religiões como laços que os
uniam uns aos outros: era uma espécie de associação do género humano. Havia
como que uma espécie de direito de hospitalidade tanto entre os deuses, como
entre os homens. Um estranho que chegava a uma cidade começava por adorar os
deuses do país. Nunca se deixava de venerar os deuses dos próprios inimigos.
(…)
Vede, peço-vos, as consequências terríveis do
direito da intolerância. Se fosse permitido espoliar dos seus bens, atirar para
uma masmorra, matar um cidadão que, num determinado grau de latitude, não
professasse a religião admitida nesse grau, que excepção isentaria as
principais figuras do Estado dessas mesmas penas? (…)
Não é preciso uma grande arte, uma eloquência muito rebuscada, para
demonstrar que os cristãos se devem tolerar mutuamente. Vou mais longe: digo-vos
que é preciso encarar todos os homens como nossos irmãos. O quê! Meu irmão, o
turco? Meu irmão, o chinês? O judeu? O siamês? Sim, sem hesitação; não somos
todos nós filhos do mesmo pai, e criaturas do mesmo Deus?»
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