9.4.10

À Sombra de Um Toldo Vermelho

Um Toldo Vermelho de Joaquim Manuel Magalhães (JMM) provocou reacções que nem sempre ajudam a entender o livro mas que são reveladoras do estado actual da crítica literária.

No Ípsilon de 12 de Março, Luís Miguel Queirós (LMQ) recorre a Dr. Jekyll e Mr. Hyde de Stevenson para falar do «estranho caso do poeta que destruiu a sua própria obra».

Para o crítico do Público, se JMM pudesse fazer desaparecer tudo o que publicou até agora, «a poesia portuguesa teria perdido um dos seus nomes mais relevantes e, triste contrapartida, teria ganho um poeta de uma deprimente mediocridade». E para ilustrar a afirmação, LMQ analisa alguns poemas de Um Toldo Vermelho em função de poemas originais e fala em «desfiguração» e fealdade.

LMQ é poeta e a sua desilusão com Um Toldo Vermelho resulta talvez de ser um leitor admirativo da anterior obra de JMM, o que lhe perturbou os reflexos de crítico. Este não tem que opor os seus gostos aos de um autor – o seu papel é bem mais complexo.

A comparação com a obra de Louis Stevenson é, à partida, uma metáfora errada. Hyde é a irrupção das pulsões instintivas, o irracional que submerge a consciência e as acções. Ora é evidente que, num autor como JMM, que sempre se mostrou capaz de reflectir sobre a sua poesia e a dos outros, a escrita de Um Toldo Vermelho é um gesto longamente reflectido e, por isso mesmo, não isento de significado.

O papel do crítico é revelar o sentido de uma obra reconstituindo os processos que levaram à sua criação, sempre consciente de que as suas concepções estão impregnadas de ideologia. Ora uma obra literária abala, para usar a expressão de Roland Barthes, «os sentidos seguros que as crenças, ideologias e senso comum parecem deter».

Embora tenha cotejado os poemas de Um Toldo Vermelho com poemas que terão estado na sua origem, LMQ não se apercebeu do que há de novo em Um Toldo Vermelho. Neste livro as elipses são radicalizadas, não existe um único substantivo, adjectivo ou verbo repetido e alguns dos sons recorrentes da língua portuguesa são evitados, ou seja, o autor modificou regras fundamentais do seu vocabulário, fonética e sintaxe. Não estamos perante uma poesia modulada pelo ritmo tonal das sílabas e dos versos mas de um ritmo abrupto e serial.

Quem analisa uma obra como Um Toldo Vermelho tem de começar por se interrogar sobre o sentido de um gesto que subverte as habituais regras da prosódia e imagética na criação da poesia e que, falhado ou conseguido, é um acto radical.

Terá o autor desejado ocultar ou mesmo suprimir a sua anterior poesia? Será uma recusa da apropriação da sua obra por leitores que não deseja ou autores que nada lhe dizem? Poderá ser a radicalização da atitude que o levou a rejeitar a integração em antologias? Ou o resultado de uma fuga a metáforas e imagens ameaçadas de facilidade e repetição? Estaremos perante uma destruição criativa? Ou, pelo contrário, de uma obsessão empobrecedora?

Na LER de Abril, Jorge Reis-Sá (JR-S), co-autor da mais bem comportada antologia de poesia portuguesa, rejubila com o que designa por «Um Toldo às Escuras» e que lhe parece ser a fatal queda no abismo de uma tendência poética.

Enredado em estéreis disputas, JR-S pretende ajustar contas com os poetas «sem qualidades» que teriam nascido sob a «tutela oficial» de JMM. Na verdade, JMM, referência em termos ensaísticos, sempre parece ter esperado dos outros poetas que recusassem influências, como ele recusou, por exemplo, a de Herberto Hélder. E talvez não seja sequer gratuito colocar a hipótese de, em Um Toldo Vermelho, ter procurado fugir à influência que a sua anterior poesia exerceu sobre ele próprio.

O cronista da LER abdica de qualquer pretensão interpretativa ao considerar Um Toldo Vermelho um livro «sem sentido». No fundo, limita-se a hesitar entre dois receios. O de que a ruptura, que considera desastrada, de JMM dê agora «uma importância desmedida a alguns poetas da nova geração» e o de que possa dar origem «a uma nova prole de filhos pródigos (quiçá os mesmos também revolucionários?)». Por isso termina prevendo que a «análise absoluta e encartada» do livro «será feita por alguns críticos hebdomadários com contorcionismos analíticos dignos do Circo Chen».

Há demasiado tempo que não frequento circos. Mas acho os seus acrobatas mil vezes preferíveis aos penosos esforços de um poeta e editor halterofilista que, num Ginásio de Ressentimento, procura erguer pesos que excedem as suas forças.

As tendências e as suas infindáveis disputas sempre foram a flor de sal da vida poética. Só que em geral, como no caso dos real visceralistas mexicanos ficcionados por Bolaño em Detectives Selvagens, possuem um certo garbo intelectual. Mas os chamados «poetas sem qualidades» só inspiram a JR-S aguados desejos de vingança.

Uma atitude crítica em relação a Um Toldo Vermelho partiu de António Guerreiro (AG) que, na revista Actual de 2 de Abril, afirma que o livro consuma «a mais radical operação poética – e a mais cheia de consequências – da literatura portuguesa das últimas décadas». Uma das razões para isso é que AG, que não é poeta, foi capaz de suspender à partida um juízo imediatista diante da estranheza de Um Toldo Vermelho. Distingue a sua linguagem de crítico, que é uma metalinguagem, da linguagem do autor que é a da criação e tem uma semântica particular, feita de regras e restrições próprias. Por isso mesmo AG é capaz de estabelecer um diálogo entre a sua própria subjectividade crítica e a de JMM.

AG reconhece que esta poesia é bárbara e «resiste com tenacidade ao discurso do sentido». Mas considera que só é assim porque estamos «anestesiados pela beleza poética que nos decora o mundo e a vida, embalados pela estética da vogal e da eufonia».

O único problema do artigo de Guerreiro vem da necessidade de pontuar Um Toldo Vermelho com estrelas, o que esbate a distância que se lhe entrevê em relação à nova poesia de JMM e que é evidente numa frase final:

«Mas, se queremos sobreviver, não nos podemos instalar definitivamente e de maneira exclusiva por baixo de Um Toldo Vermelho: a poesia anterior de JMM continua disponível e serve-nos de vingança. É a guerra.»



Nota: Nunca falei com JMM sobre o conteúdo de Um Toldo Vermelho. Abordei com ele apenas questões como o formato, o tipo de impressão e a capa do livro. Considero que um editor, nisto semelhante a um crítico, deve ser capaz de acolher a radical estranheza de uma nova linguagem.



Francisco Vale

1 comentário:

  1. Caro Francisco Vale! Como leitor compulsivo e com gostos muito díspares, apesar de uma inegável preferência pela poesia, ao ler este artigo vejo reforçada a minha opinião sobre a "crítica literária". São poucos os que utilizam os espaços, que lhes facultam, para fazerem críticas sérias e construtivas. Pobre da minha biblioteca se qualquer um dos livros que a compõem tivesse sido adquirido depois de ler a respectiva crítica.
    É evidente que nesses artigos críticos não basta dizer se é bom ou mau, se se gosta ou odeia e se é bonito ou feio, tem de se justificar com algum sumo. Mas o recorrente é encontrar palha e, mais grave, lavagem de roupa suja transformando o artigo, que se quer de opinião, numa autêntica feira de vaidades comezinhas.
    Sobre o UM TOLDO VERMELHO, adquiri o livro que li com atenção e apesar de não o considerar um colosso de escrita, e pegando em parte da última frase do seu artigo, eu como leitor e poeta recém editado "devo ser capaz de acolher a radical estranheza de uma nova linguagem". Aliás, julgo que é precisamente neste ponto que assentam os critérios da Relógio D'água na elaboração da sua belíssima colecção de poesia.
    Manu Dixit

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